E a menina que não tem pesadelos pergunta:
- Vale a pena? Será que vale realmente a pena?
Paramos e pensamos.
Eu desatinei a falar todas as coisas que na minha cabeça pareciam estar claras e postas sobre a mesa do jantar a muito tempo... que poderíamos saborear de nossos afetos e inclusive de nossos medos, juntas. E dormir, bem, depois – eu, ela e a chuva.
Mas não se pode ter tudo não é mesmo? Não dá pra engolir o medo do outro. O outro precisa se colocar à disposição de fazê-lo.
Me servi de um pouco mais da confiança que tinha na panela e me voltei para ela e enfim dizer:
- Faço tudo pelo nosso amor. Faço tudo pelo bem do nosso bem meu bem. A saudade é minha dor que anda arrasando com meu coração. Não duvide que um dia eu te darei... não o céu, mas não duvide... disso.
Disso? Perguntaria ela.
E eu, não saberia explicar que “disso” tem feito os meus dias mais diferentes e suportáveis de serem enfrentados. Apenas soube dizer:
- Eu só sei que está acontecendo! E é bom! Você consegue sentir, meu amor?
Eu sei é que eu sou idiota e não consigo dizer - cuida de mim que eu não finjo e não esqueço de você.
Se eu ousar te contar o que eu sonhei, pode até engasgar, pagaria pra ver.
Mas como eu te valorizo, eu te espero acordar,
Pra isso.
*música de Tiê
17 de agosto de 2011
31 de julho de 2011
*Ei gay, é preciso movimentar-se.

Se hoje os homossexuais não são queimados em praça pública são induzidos a acreditar que sua forma de existir é pecado, doença ou desvio moral grave. São empurrados pra invisibilidade do armário e pra manutenção dos bons costumes da nossa linda, limpa, virgem, pura e decente sociedade.
Os manicômios que tratavam com banho gelados e eletro choques as pessoas que não se atraíam por pessoas do mesmo sexo fecharam suas portas e deram lugar à simples pressão diária e ideológica propagada nos templos, escolas e mídia burguesa. Homofobia institucional velada e protegida por lei sob o véu da suposta (e deturpado conceito de) liberdade defendida por alguns opressores.
Mas para a surpresa de todos e mesmo frente ao perigo de assumir a si mesmo, homossexuais continuaram a existir... e a forçar as portas dos armários.
Um salve ao mais famoso marco na luta homossexual moderna: a Revolta de Stonewall em 1969! Salve a Madame Satã e a subversão dos papeis sociais de gênero que condicionam o feminino à subalternização em relação ao masculino. Todo o orgulho aos “fora do padrão de sexualidade” que ousam ser si mesmo e dão a cara a tapa, apesar pressão da heteronormatividade! Mas é preciso mais. É preciso movimentar-se.
Nosso Brasil, “o país sem preconceitos”, ocupa o primeiro lugar nas estatísticas mundiais de assassinato por homofobia. O que acompanhamos é uma onda de violência homofóbica acontecendo sob os narizes dos que afirmam que não é preciso criminalizá-la. Um país em que seu governo rifa os direitos dos homossexuais se dobrando à chantagem política da bancada religiosa e conservadora. Um governo que se omite e que mata. Um sistema que mata.
Repito: é preciso movimentar-se! Prestemos atenção no que está acontecendo... houve um grande acontecimento no que tange à luta de LGBT’s (gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros) por igualdade de direitos: o reconhecimento da união estável homoafetiva pelo STF. Porém, grande também está sendo a mobilização de reprovação a essa decisão e inclusive no sentido de vetar a aprovação do projeto de lei que criminaliza a homofobia, PLC122.
É preciso movimentar-se e estar atento para o fato de que se por um lado LGBT’s brasileiros conquistaram o reconhecimento de sua união estável, por outro continuam a mercê da violência física, moral, psicológica diariamente e sob a influência religiosa sobre um governo covarde de um estado que deveria ser laico.
É preciso estar atento ao fato de que quanto maior expressividade tiverem as nossas exigências por igualdade, maior expressividade também terá o conservadorismo e a defesa da liberdade de oprimir e discriminar. É preciso movimentar-se ou seremos afogados pela crescente onda de violência e sufocados com a fumaça das fogueiras dos corpos de nossos iguais.
É preciso movimentar-se pois não admitiremos mais que o amor por outra pessoa seja condenado e castigado cruelmente pelo simples fato de subverter ao modelo nuclear e heterossexual de família que sustenta esse sistema. Não admitiremos mais que pessoas sejam violentadas por sua diversidade e que os governos se omitam e nesse sentido contribuam para a proliferação da intolerância e homofobia.
Cada lésbica, gay, bissexual, travesti, transexual e não-heterossexuais em geral que são assassinados nesse país é um pouco de nós que morre. A cada violência cometida somos violentados juntos e não podemos admitir e reproduzir o preconceito no dia a dia. A cada ridicularização dos homossexuais em programas de humor e afirmação de preconceitos em geral, dizemos não.
É preciso movimentar-se, indignar-se, exigir e lutar. É preciso ir pras ruas, homossexuais ou não, juntos porque não admitimos que digam que LGBT’s não merecem dignidade porque essa é a vontade de deus ou da natureza. Seu governo laico (oi?) te representa? Cadê a luta na parada gay? Cadê você na luta? Cadê o seu lugar nessa sociedade branca, heterossexual, patriarcal, desigual e opressora?
É preciso movimentar-se, porque como Rosa Luxemburgo disse: quem não se movimenta, não sente as correntes que o prendem.
E é preciso estraçalhar as correntes.
*Ei gay, hétero, mulher, índio, estudante, trabalhador e trabalhadora... É preciso ser movimento e precisamos o ser JUNTOS.
Nosso Brasil, “o país sem preconceitos”, ocupa o primeiro lugar nas estatísticas mundiais de assassinato por homofobia. O que acompanhamos é uma onda de violência homofóbica acontecendo sob os narizes dos que afirmam que não é preciso criminalizá-la. Um país em que seu governo rifa os direitos dos homossexuais se dobrando à chantagem política da bancada religiosa e conservadora. Um governo que se omite e que mata. Um sistema que mata.
Repito: é preciso movimentar-se! Prestemos atenção no que está acontecendo... houve um grande acontecimento no que tange à luta de LGBT’s (gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros) por igualdade de direitos: o reconhecimento da união estável homoafetiva pelo STF. Porém, grande também está sendo a mobilização de reprovação a essa decisão e inclusive no sentido de vetar a aprovação do projeto de lei que criminaliza a homofobia, PLC122.
É preciso movimentar-se e estar atento para o fato de que se por um lado LGBT’s brasileiros conquistaram o reconhecimento de sua união estável, por outro continuam a mercê da violência física, moral, psicológica diariamente e sob a influência religiosa sobre um governo covarde de um estado que deveria ser laico.
É preciso estar atento ao fato de que quanto maior expressividade tiverem as nossas exigências por igualdade, maior expressividade também terá o conservadorismo e a defesa da liberdade de oprimir e discriminar. É preciso movimentar-se ou seremos afogados pela crescente onda de violência e sufocados com a fumaça das fogueiras dos corpos de nossos iguais.
É preciso movimentar-se pois não admitiremos mais que o amor por outra pessoa seja condenado e castigado cruelmente pelo simples fato de subverter ao modelo nuclear e heterossexual de família que sustenta esse sistema. Não admitiremos mais que pessoas sejam violentadas por sua diversidade e que os governos se omitam e nesse sentido contribuam para a proliferação da intolerância e homofobia.
Cada lésbica, gay, bissexual, travesti, transexual e não-heterossexuais em geral que são assassinados nesse país é um pouco de nós que morre. A cada violência cometida somos violentados juntos e não podemos admitir e reproduzir o preconceito no dia a dia. A cada ridicularização dos homossexuais em programas de humor e afirmação de preconceitos em geral, dizemos não.
É preciso movimentar-se, indignar-se, exigir e lutar. É preciso ir pras ruas, homossexuais ou não, juntos porque não admitimos que digam que LGBT’s não merecem dignidade porque essa é a vontade de deus ou da natureza. Seu governo laico (oi?) te representa? Cadê a luta na parada gay? Cadê você na luta? Cadê o seu lugar nessa sociedade branca, heterossexual, patriarcal, desigual e opressora?
É preciso movimentar-se, porque como Rosa Luxemburgo disse: quem não se movimenta, não sente as correntes que o prendem.
E é preciso estraçalhar as correntes.
*Ei gay, hétero, mulher, índio, estudante, trabalhador e trabalhadora... É preciso ser movimento e precisamos o ser JUNTOS.
29 de junho de 2011
Ao sabor da música*
Depois da viagem tão cansativa, o melhor de chegar em casa foi encontrar sobre a cama o envelope pardo de carta. Já o esperava desde que soube que chegaria.
O coração bate forte, estranhamente forte de ansiedade, estranhamente alegre e aquecido.
A letra bonita, bem desenhada, carta, desenho, musica, arte, carinho, tudo junto em um envelope que não fazia justiça alguma à grandiosidade do que guardava. Guardava o prazer de poder sentir a outra pessoa.
Tudo parte de um projeto, eu sei. O projeto Matar a Saudade segue adiante e sabemos que a saudade alimenta a si própria, cresce e também alimenta sentimentos que de uma hora pra outra, assim, como se não tivessem a quem dar satisfação... se apoderam de nós.
Tudo junto, misturado, colorido, verde, idiota, perto e distante...
“Meu chá de erva doce
Meu cobertor tão verde
De nada serviriam...
Se não fosse você eu ainda estaria doente...”
Sentimos o sabor de nossas musicas... essas de som verdadeiro, vindo de dentro, de se fazer lembrar de ti, de mim, como se fosse possível esquecer.
Quando as almas se identificam o que se pode fazer?
Não há explicação alguma... Se houvesse nem eu, nem você, nem nós, a quereríamos.
É um prazer poder te sentir.
Te sinto, me sente.
Te amo.
*Ao som de "Dependente" de Érika Machado. Um título que não faz justiça ao conteúdo da música.
O coração bate forte, estranhamente forte de ansiedade, estranhamente alegre e aquecido.
A letra bonita, bem desenhada, carta, desenho, musica, arte, carinho, tudo junto em um envelope que não fazia justiça alguma à grandiosidade do que guardava. Guardava o prazer de poder sentir a outra pessoa.
Tudo parte de um projeto, eu sei. O projeto Matar a Saudade segue adiante e sabemos que a saudade alimenta a si própria, cresce e também alimenta sentimentos que de uma hora pra outra, assim, como se não tivessem a quem dar satisfação... se apoderam de nós.
Tudo junto, misturado, colorido, verde, idiota, perto e distante...
“Meu chá de erva doce
Meu cobertor tão verde
De nada serviriam...
Se não fosse você eu ainda estaria doente...”
Sentimos o sabor de nossas musicas... essas de som verdadeiro, vindo de dentro, de se fazer lembrar de ti, de mim, como se fosse possível esquecer.
Quando as almas se identificam o que se pode fazer?
Não há explicação alguma... Se houvesse nem eu, nem você, nem nós, a quereríamos.
É um prazer poder te sentir.
Te sinto, me sente.
Te amo.
*Ao som de "Dependente" de Érika Machado. Um título que não faz justiça ao conteúdo da música.
10 de abril de 2011
Pelo espelho: A fera em si mesmo.
Não tenha medo da mordida, da fome de carne humana, de intensidade, de tudo o que é fugaz.
Olhou pro espelho e viu a fera que mora dentro de si... a fera, a verdade, a vontade... o ranger de dentes. Sentiu o sangue pulsando, os sentidos despertos, as pupilas dilatadas e tudo ao alcance dos dedos... tudo possível. O tudo. A vontade de pular, correr, quebrar... de sexo selvagem sem bom dia no dia, no dia que se segue, sem saber será bom dia. Quis sentir tudo o que dá pra sentir... o abraço, a língua, o álcool, a musica, o gozo e a incerteza da existência de um a manhã ou de uma porra qualquer que vá além do que acontece no agora. Ouviu dizer que anda muito impaciente, querendo as revoluções pra hoje, pra daqui a pouco depois do ultimo gole... o gole que dá força pro mal traçado dessas poucas tortas linhas de texto que talvez não faça o mínimo sentido pra outrem, depois. Olhou pro espelho e viu no olho um vermelho, desfocado, quase saltado da órbita e o próprio corpo querendo saltar, sair de si, arranhar, quebrar, atingir... Lembrou da moça bonita, aquela que todos estavam querendo... que ele provavelmente deveria querer... mas de verdade tem pensado que talvez seja de si e de suas escolhas viver só, valorizar os mistérios e a dor da solidão... Pensou ser deveras estranho por não gostar de nada que é superficial... por ser alguém que gosta da profundidade das coisas, mesmo sabendo que a profundidade também traz dor. Pensou que talvez seja bem esse o próprio jeito de amar e viver. De amar a impossibilidade aparente e querer que continuem impossíveis os amores todos. Talvez seja isso mesmo... a escolha de ser poeta solitário, no medo do que quer que seja que possa por correntes no seu coração... de que se mantenha preso a algum lugar qualquer mesmo que esse outro lugar seja um alguém. Lembrou que vive de amor e de dor e de sonhos e só. Que pela dor aprendeu, na carne, viver o amor.
É noite e quem se atreva a olhar no espelho verá os próprios demônios e gostará deles.
25 de fevereiro de 2011
Os sobreviventes
Completos 15 anos de partida de Caio F. Morto em 25 de fevereiro de 1996.
Esse é um dos textos que eu mais gosto e é dedicado aos meus amigos Poeta e Desconexo.
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(Para ler ao som de Angela Ro-Ro)
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SRI LANKA, quem sabe? Ela me diz, morena e ferina, e eu respondo por que não? mas inabalável continua: você pode pelo menos mandar cartões-postais de lá, para que as pessoas pensem nossa, como é que ele foi parar em Sri Lanka, que cara louco esse, hein, e morram de saudade, não é isso que te importa? uma certa saudade: em Sri Lanka, brincando de Rimbaud, que nem foi tão longe, para que todos lamentem ai como ele era bonzinho e nós não lhe demos a dose suficiente de atenção para que ficasse aqui entre nós, palmeiras e abacaxis. Sem parar, abana-se com a capa do disco de Ângela enquanto fuma sem parar e bebe sem parar sua vodka nacional sem gelo nem limão. Quanto a mim, a voz rouca, fico por aqui comparecendo a atos públicos, entre uma e outra carreira, pixando muros contra usinas nucleares, em plena ressaca, um dia de monja, um dia de puta, um dia de Joplin, um dia de Tereza de Calcutá, um dia de merda enquanto seguro aquele maldito emprego de oito horas diárias para poder pagar essa poltrona de couro autêntico onde neste exato momento vossa reverendíssima assenta sua preciosa bunda e essa exótica mesinha de centro em junco indiano que apóia vossos fatigados pés
descalços ao fim de mais uma semana de batalhas inúteis, fantasias escapistas, maus orgasmos e crediários atrasados. Mas tentamos tudo, eu digo, e ela diz que sim, claaaaaaaro, tentamos tudo, inclusive trepar, porque tantos livros emprestados, tantos filmes vistos juntos, tantos pontos de vista sócio político artístico filosófico existenciais e bababá em comum só podiam dar mesmo nisso: cama. Realmente tentamos, mas foi uma bosta. Que foi que aconteceu, eu pensava depois acendendo um cigarro no outro, e não queria lembrar mas não me saía da cabeça o teu pau murchos e os bicos do meus seios que nem sequer ficaram duros, pela primeira vez na vida, você disse, e eu acreditei, pela primeira vez na vida, eu disse, mas não sei se você acreditou. Quero dizer que sim, que acreditei, mas ela não pára, tanta tesão mental espiritual moral existencial e nenhuma física, e eu não queria aceitar que fosse isso: éramos diferentes, ai como éramos diferentes, éramos melhores, éramos mais, éramos superiores, éramos escolhidos, éramos vagamente sagrados, mas no final das contas os bicos dos meus peitos não endureceram e o teu pau não levantou, cultura demais mata o corpo da gente, cara, filmes demais, livros demais, palavras demais, só consegui te possuir me masturbando, tinha a biblioteca de Alexandria separando nossos corpos, enfiava fundo o dedo na buceta noite após noite pedindo mete fundo, coração, explode junto comigo, depois virava de bruços e chorava no travesseiro porque naquele tempo ainda tinha culpa nojo vergonha, mas agora tudo bem, o Relatório Hite liberou a punheta. Não que fosse amor de menos, você dizia depois, ao contrário, era amor demais, você acreditava mesmo nisso? Naquele bar infecto onde costumávamos afogar nossas impotências em baldes de lirismo juvenil, imbecil, e eu disse não, o que acontece é que como bons-intelectuais-pequeno-burgueses o teu negócio é homem e o meu é mulher, podíamos até formar um casal incrível, tipo aquela amante de Virginia Woolf, como era mesmo? Vita, Vita Sackville-West e o veado do marido, não se erice, queridinho, não tenho nada contra veados, me passa a vodka, o quê? e eu lá tenho grana pra comprar wyborowas? não tenho nada contra lésbicas, não tenho nada contra decadentes em geral, não tenho nada contra qualquer coisa que soe a: uma tentativa. Peço cigarro e ela me atira o maço na cara, com que joga um tijolo, ando angustiada demais, meu amigo, palavrinha antiga essa, angústia, duas décadas de convívio cotidiano, mas ando, ando, tenho uma coisa apertada aqui no meu peito, um sufoco, uma sede, um peso, não me venha com essas história de atraiçoamos-todos-os-nossos-ideais, nunca tive porra de ideal nenhum, só queria era salvar a minha, ,veja só que coisa mais individualista elitista, capitalista, só queria ser feliz, cara. Podia ter dado certo entre a gente, ou não, afinal você naquele tempo ainda não tinha se decidido a dar a bunda, nem eu a lamber buceta, ai que gracinha nossos livrinhos de Marx, depois Marcuse, depois Reich, depois Castañeda, depois Laing embaixo do braço, aqueles sonhos colonizados nas cabecinhas idiotas, bolsas na Sorbonne, chás com Simone e Jean-Paul nos 50, em Paris; 60 em Londres ouvindo here comes the sun here comes the sun, little darling; 70 em Nova Iorque dançando disco-music no Studio; 80 a gente aqui, mastigando essa coisa porca sem conseguir engolir nem cuspir fora em esquecer esse gosto azedo na boca. Já li tudo, cara, já tentei macrobiótica psicanálise drogas acupuntura suicídio ioga dança natação Cooper astrologia patins marxismo candomblé boate gay ecologia, sobrou só esse nó no peito, agora o que faço? Não é plágio do Pessoa, mas em cada canto do meu quarto tenho uma imagem de Buda, uma de mãe Oxum, outra de Jesuzinho, um pôster de Freud, às vezes acendo vela, faço reza, queimo incenso, tomo banho de arruda, jogo sal grosso nos cantos, não te peço solução nenhuma, você vai curtir os seus nativos de Sri Lanka depois me manda um cartão-postal contando qualquer coisa como ontem à noite, à beira do rio, deve haver um rio por lá, um rio lodoso, cheio de juncos sombrios, mas ontem na beira do rio, sem planejar nada, de repente, por acaso, encontrei um rapaz de tez azeitonada e olhos oblíquos que. Hein? claro que deve haver alguma espécie de dignidade nisso tudo, a questão é onde, não nesta cidade escura, não neste planeta podre e pobre, dentro de mim? Ora não me venhas com autoconhecimentos-redentores, já sei tudo de mim, tomei mais de cinqüenta ácidos fiz seis anos de análise, já pirei de clínica, lembra? você me levava maçãs argentinas e fotonovelas italianas, Rossana Galli, Franco Andrei, Michela Roc, Sandro Moretti, eu te olhada entupida de mandrix e babava soluçando perdi minha alegria, anoiteci, roubaram minha esperança, enquanto você, solidário e positivo, apertava meu ombro com sua mão apesar de tudo viril repetindo reage, companheira, reage, a causa precisa dessa tua cabecinha privilegiada, teu potencial criativo, tua lucidez libertária, bababá bababá. As pessoas se transformavam em cadáveres decompostos à minha frente, minha pele era triste e suja, as noites não terminavam nunca, ninguém me tocava, mas eu reagi, despirei, e cadê a causa, cadê a luta, cadê o potencial criativo? Mato, não mato, atordôo minha sede com sapatinhos do Ferro’s Bar ou encho a cara sozinha aos sábados esperando o telefone tocar, e nunca toca, ouvindo samba-canção e blues com caipira de vodka, neste apartamento que pago com o suor do potencial criativo da bunda que dou oito horas diárias pra aquela multinacional fodida. Mas eu quero dizer, e ela me corta mansa, claro que você não tem culpa, coração, caímos exatamente na mesma ratoeira, a única diferença é que você pensa que pode escapar, eu quero chafurdar na dor deste ferro enfiado fundo na minha garganta seca, me passa o cigarro, não estou desesperada, ,não mais do que sempre estive, não estou bêbada nem louca, estou é lúcida pra caralho e sei claramente que não tenho nenhuma saída, não se preocupe, depois que você sair tomo banho frio, lente quente com mel de eucalipto e ginseng, depois deito, depois durmo, depois acordo e passo uma semana a ban-chá e arroz integral, absolutamente santa, absolutamente pura, absolutamente limpa, depois tomo outro porre, cheiro cinco gramas, bato o carro numa esquina ou ligo para o CVV às quatro da madrugada e alugo a cabeça dum panaca qualquer choramingando coisas do tipo preciso-tanto-de-uma-razão-para-viver-esei-que-esta-razão-só-está-dentro-de-mim-bababá-bababá, até o sol pintar atrás daqueles edifícios, não vou tomar nenhuma medida drástica, a não ser continuar, tem coisa mais destrutiva que insistir sem fé nenhuma? Passa devagar a tua mão na minha cabeça, no meu coração, eu tive tanto amor um dia, pára e pede, preciso tanto, tanto, tanto, bicho, não me permitiram, então estendo os dedos e ela fica subitamente pequenina apertada contra meu peito, perguntando se está mesmo muito feia e meio puta e muito velha e completamente bêbada, eu não tinha essas marcas em volta dos olhos, eu não tinha esses vincos em torno da boca, eu não tinha esse jeito de sapatão cansado, e eu repito que não, que está linda assim, desgrenhada e viva, ela pede que eu coloque uma música e escolho o Noturno número dois em mi bemol de Chopin, quero deixá-la assim, dormindo no escuro, sobre este sofá, ao lado das papoulas quase murchas, embalada pelo piano remoto como uma canção de ninar, mas ela se contrai violenta e pede que eu ponha Angela outra vez, então viro o disco, amor meu grande amor, caminhamos tontos até o banheiro onde sustento sua cabeça sobre a privada para que vomite, e sem querer vomito junto, ao mesmo tempo, os dois abraçados, bocas amargas, fragmentos azedos sobre as línguas, ela puxa a descarga e vai me empurrando para a porta, pedindo que me vá, e me expulsa para o corredor dizendo não esqueça então de mandar um cartão de Sri Lanka, aquele rio lodoso, aquela tez azeitonada, que aconteça alguma coisa bem bonita para você, te desejo uma fé enorme, em qualquer coisa, não importa o quê, como aquela fé que a gente teve um dia, me deseja também uma coisa bem bonita, uma coisa qualquer maravilhosa, que me faça acreditar em tudo de novo, que nos faça acreditar em todos de novo, que leve para longe da minha boca esse gosto podre de fracasso, de derrota sem nobreza, não tem jeito, companheiro, nos perdemos no meio da estrada e nunca tivemos mapa algum, ninguém dá mais carona e a noite já vem chegando. A chave gira na porta. Preciso me apoiar contra a parede para não cair. Atrás da madeira, misturada ao piano e à voz rouca de Angela, nem que eu rastejasse até o Leblon, consigo ouvi-la repetindo que tudo vai bem, tudo continua bem, tudo muito bem, tudo bem. Axé, axé, axé! eu digo e insisto, até o elevador chegar. Axé, odara!
descalços ao fim de mais uma semana de batalhas inúteis, fantasias escapistas, maus orgasmos e crediários atrasados. Mas tentamos tudo, eu digo, e ela diz que sim, claaaaaaaro, tentamos tudo, inclusive trepar, porque tantos livros emprestados, tantos filmes vistos juntos, tantos pontos de vista sócio político artístico filosófico existenciais e bababá em comum só podiam dar mesmo nisso: cama. Realmente tentamos, mas foi uma bosta. Que foi que aconteceu, eu pensava depois acendendo um cigarro no outro, e não queria lembrar mas não me saía da cabeça o teu pau murchos e os bicos do meus seios que nem sequer ficaram duros, pela primeira vez na vida, você disse, e eu acreditei, pela primeira vez na vida, eu disse, mas não sei se você acreditou. Quero dizer que sim, que acreditei, mas ela não pára, tanta tesão mental espiritual moral existencial e nenhuma física, e eu não queria aceitar que fosse isso: éramos diferentes, ai como éramos diferentes, éramos melhores, éramos mais, éramos superiores, éramos escolhidos, éramos vagamente sagrados, mas no final das contas os bicos dos meus peitos não endureceram e o teu pau não levantou, cultura demais mata o corpo da gente, cara, filmes demais, livros demais, palavras demais, só consegui te possuir me masturbando, tinha a biblioteca de Alexandria separando nossos corpos, enfiava fundo o dedo na buceta noite após noite pedindo mete fundo, coração, explode junto comigo, depois virava de bruços e chorava no travesseiro porque naquele tempo ainda tinha culpa nojo vergonha, mas agora tudo bem, o Relatório Hite liberou a punheta. Não que fosse amor de menos, você dizia depois, ao contrário, era amor demais, você acreditava mesmo nisso? Naquele bar infecto onde costumávamos afogar nossas impotências em baldes de lirismo juvenil, imbecil, e eu disse não, o que acontece é que como bons-intelectuais-pequeno-burgueses o teu negócio é homem e o meu é mulher, podíamos até formar um casal incrível, tipo aquela amante de Virginia Woolf, como era mesmo? Vita, Vita Sackville-West e o veado do marido, não se erice, queridinho, não tenho nada contra veados, me passa a vodka, o quê? e eu lá tenho grana pra comprar wyborowas? não tenho nada contra lésbicas, não tenho nada contra decadentes em geral, não tenho nada contra qualquer coisa que soe a: uma tentativa. Peço cigarro e ela me atira o maço na cara, com que joga um tijolo, ando angustiada demais, meu amigo, palavrinha antiga essa, angústia, duas décadas de convívio cotidiano, mas ando, ando, tenho uma coisa apertada aqui no meu peito, um sufoco, uma sede, um peso, não me venha com essas história de atraiçoamos-todos-os-nossos-ideais, nunca tive porra de ideal nenhum, só queria era salvar a minha, ,veja só que coisa mais individualista elitista, capitalista, só queria ser feliz, cara. Podia ter dado certo entre a gente, ou não, afinal você naquele tempo ainda não tinha se decidido a dar a bunda, nem eu a lamber buceta, ai que gracinha nossos livrinhos de Marx, depois Marcuse, depois Reich, depois Castañeda, depois Laing embaixo do braço, aqueles sonhos colonizados nas cabecinhas idiotas, bolsas na Sorbonne, chás com Simone e Jean-Paul nos 50, em Paris; 60 em Londres ouvindo here comes the sun here comes the sun, little darling; 70 em Nova Iorque dançando disco-music no Studio; 80 a gente aqui, mastigando essa coisa porca sem conseguir engolir nem cuspir fora em esquecer esse gosto azedo na boca. Já li tudo, cara, já tentei macrobiótica psicanálise drogas acupuntura suicídio ioga dança natação Cooper astrologia patins marxismo candomblé boate gay ecologia, sobrou só esse nó no peito, agora o que faço? Não é plágio do Pessoa, mas em cada canto do meu quarto tenho uma imagem de Buda, uma de mãe Oxum, outra de Jesuzinho, um pôster de Freud, às vezes acendo vela, faço reza, queimo incenso, tomo banho de arruda, jogo sal grosso nos cantos, não te peço solução nenhuma, você vai curtir os seus nativos de Sri Lanka depois me manda um cartão-postal contando qualquer coisa como ontem à noite, à beira do rio, deve haver um rio por lá, um rio lodoso, cheio de juncos sombrios, mas ontem na beira do rio, sem planejar nada, de repente, por acaso, encontrei um rapaz de tez azeitonada e olhos oblíquos que. Hein? claro que deve haver alguma espécie de dignidade nisso tudo, a questão é onde, não nesta cidade escura, não neste planeta podre e pobre, dentro de mim? Ora não me venhas com autoconhecimentos-redentores, já sei tudo de mim, tomei mais de cinqüenta ácidos fiz seis anos de análise, já pirei de clínica, lembra? você me levava maçãs argentinas e fotonovelas italianas, Rossana Galli, Franco Andrei, Michela Roc, Sandro Moretti, eu te olhada entupida de mandrix e babava soluçando perdi minha alegria, anoiteci, roubaram minha esperança, enquanto você, solidário e positivo, apertava meu ombro com sua mão apesar de tudo viril repetindo reage, companheira, reage, a causa precisa dessa tua cabecinha privilegiada, teu potencial criativo, tua lucidez libertária, bababá bababá. As pessoas se transformavam em cadáveres decompostos à minha frente, minha pele era triste e suja, as noites não terminavam nunca, ninguém me tocava, mas eu reagi, despirei, e cadê a causa, cadê a luta, cadê o potencial criativo? Mato, não mato, atordôo minha sede com sapatinhos do Ferro’s Bar ou encho a cara sozinha aos sábados esperando o telefone tocar, e nunca toca, ouvindo samba-canção e blues com caipira de vodka, neste apartamento que pago com o suor do potencial criativo da bunda que dou oito horas diárias pra aquela multinacional fodida. Mas eu quero dizer, e ela me corta mansa, claro que você não tem culpa, coração, caímos exatamente na mesma ratoeira, a única diferença é que você pensa que pode escapar, eu quero chafurdar na dor deste ferro enfiado fundo na minha garganta seca, me passa o cigarro, não estou desesperada, ,não mais do que sempre estive, não estou bêbada nem louca, estou é lúcida pra caralho e sei claramente que não tenho nenhuma saída, não se preocupe, depois que você sair tomo banho frio, lente quente com mel de eucalipto e ginseng, depois deito, depois durmo, depois acordo e passo uma semana a ban-chá e arroz integral, absolutamente santa, absolutamente pura, absolutamente limpa, depois tomo outro porre, cheiro cinco gramas, bato o carro numa esquina ou ligo para o CVV às quatro da madrugada e alugo a cabeça dum panaca qualquer choramingando coisas do tipo preciso-tanto-de-uma-razão-para-viver-esei-que-esta-razão-só-está-dentro-de-mim-bababá-bababá, até o sol pintar atrás daqueles edifícios, não vou tomar nenhuma medida drástica, a não ser continuar, tem coisa mais destrutiva que insistir sem fé nenhuma? Passa devagar a tua mão na minha cabeça, no meu coração, eu tive tanto amor um dia, pára e pede, preciso tanto, tanto, tanto, bicho, não me permitiram, então estendo os dedos e ela fica subitamente pequenina apertada contra meu peito, perguntando se está mesmo muito feia e meio puta e muito velha e completamente bêbada, eu não tinha essas marcas em volta dos olhos, eu não tinha esses vincos em torno da boca, eu não tinha esse jeito de sapatão cansado, e eu repito que não, que está linda assim, desgrenhada e viva, ela pede que eu coloque uma música e escolho o Noturno número dois em mi bemol de Chopin, quero deixá-la assim, dormindo no escuro, sobre este sofá, ao lado das papoulas quase murchas, embalada pelo piano remoto como uma canção de ninar, mas ela se contrai violenta e pede que eu ponha Angela outra vez, então viro o disco, amor meu grande amor, caminhamos tontos até o banheiro onde sustento sua cabeça sobre a privada para que vomite, e sem querer vomito junto, ao mesmo tempo, os dois abraçados, bocas amargas, fragmentos azedos sobre as línguas, ela puxa a descarga e vai me empurrando para a porta, pedindo que me vá, e me expulsa para o corredor dizendo não esqueça então de mandar um cartão de Sri Lanka, aquele rio lodoso, aquela tez azeitonada, que aconteça alguma coisa bem bonita para você, te desejo uma fé enorme, em qualquer coisa, não importa o quê, como aquela fé que a gente teve um dia, me deseja também uma coisa bem bonita, uma coisa qualquer maravilhosa, que me faça acreditar em tudo de novo, que nos faça acreditar em todos de novo, que leve para longe da minha boca esse gosto podre de fracasso, de derrota sem nobreza, não tem jeito, companheiro, nos perdemos no meio da estrada e nunca tivemos mapa algum, ninguém dá mais carona e a noite já vem chegando. A chave gira na porta. Preciso me apoiar contra a parede para não cair. Atrás da madeira, misturada ao piano e à voz rouca de Angela, nem que eu rastejasse até o Leblon, consigo ouvi-la repetindo que tudo vai bem, tudo continua bem, tudo muito bem, tudo bem. Axé, axé, axé! eu digo e insisto, até o elevador chegar. Axé, odara!
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Axé.
27 de janeiro de 2011
Acrobata*
Minha recomendação é que leiam, primeiramente, apenas o texto de cor preta que é na íntegra o texto de Galeano.
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Luz Marina Acosta era menininha quando descobriu o circo Firuliche.
O circo Firuliche emergiu certa noite, É quando menos se imagina e não se sabe bem de onde vem o arrepio... mas nesse momento você entende que esperou toda a vida por isso. mágico barco de luzes, das profundidades do Lago Nicarágua. Eram clarins guerreiros as cornetas de papelão dos palhaços e bandeiras altas os farrapos que ondeavam anunciando a maior festa do mundo. A lona estava toda cheia de remendos, e também os leões, aposentados leões, mas a lona era um castelo e os leões, os reis da selva. E uma senhora rechonchuda, brilhante de lantejoulas, era a rainha dos céus, balançando nos trapézios a um metro do chão.
Então, Luz Marina decidiu tornar-se acrobata. E saltou de verdade, lá do alto, e em sua primeira acrobacia, aos seis anos de idade, quebrou as costelas. E mesmo que se quebrem as costelas, não deixa de saltar jamais. O que é uma costela diante da sensação, por mínima que seja, de voar?
E assim foi, depois, a vida. Na guerra, longa guerra contra a ditadura de Somoza, e nos amores: sempre voando, sempre quebrando as costelas.
Porque quem entra no circo Firuliche não sai jamais.
Quem sente o gosto do sonho, nunca mais é o mesmo. Nunca mais consegue viver sem sonhar. Quem consegue voar não se contenta em um mundo na superfície... e é linda a alma de quem não quer o vôo solitário, mas sonha com que todos possam voar.
Se sonha, se luta.
Porque quem entra no circo Firuliche não sai jamais.
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*Eduardo Galeano é um escritor uruguaio que fala da nossa gente. Que me faz arrepiar, acreditar e ter muito mais vontade. Os escritos em vermelho são dele em mim... são meus por ele.
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Luz Marina Acosta era menininha quando descobriu o circo Firuliche.
O circo Firuliche emergiu certa noite, É quando menos se imagina e não se sabe bem de onde vem o arrepio... mas nesse momento você entende que esperou toda a vida por isso. mágico barco de luzes, das profundidades do Lago Nicarágua. Eram clarins guerreiros as cornetas de papelão dos palhaços e bandeiras altas os farrapos que ondeavam anunciando a maior festa do mundo. A lona estava toda cheia de remendos, e também os leões, aposentados leões, mas a lona era um castelo e os leões, os reis da selva. E uma senhora rechonchuda, brilhante de lantejoulas, era a rainha dos céus, balançando nos trapézios a um metro do chão.
Então, Luz Marina decidiu tornar-se acrobata. E saltou de verdade, lá do alto, e em sua primeira acrobacia, aos seis anos de idade, quebrou as costelas. E mesmo que se quebrem as costelas, não deixa de saltar jamais. O que é uma costela diante da sensação, por mínima que seja, de voar?
E assim foi, depois, a vida. Na guerra, longa guerra contra a ditadura de Somoza, e nos amores: sempre voando, sempre quebrando as costelas.
Porque quem entra no circo Firuliche não sai jamais.
Quem sente o gosto do sonho, nunca mais é o mesmo. Nunca mais consegue viver sem sonhar. Quem consegue voar não se contenta em um mundo na superfície... e é linda a alma de quem não quer o vôo solitário, mas sonha com que todos possam voar.
Se sonha, se luta.
Porque quem entra no circo Firuliche não sai jamais.
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*Eduardo Galeano é um escritor uruguaio que fala da nossa gente. Que me faz arrepiar, acreditar e ter muito mais vontade. Os escritos em vermelho são dele em mim... são meus por ele.
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