Às vezes é preciso se perder para
poder se reencontrar... Neste movimento, estar perdido pode ser o momento mais
importante para aprofundar em si mesmo... chegar ao íntimo do que se é, de suas
dores, angústias, prazeres e efemeridades, de sentir sua fragilidade de fugacidade tão
intensas ao ponto de pensar que a realidade não é existente, nem explicável...
Que na verdade tudo isso é um conjunto desordenado de caos e insanidades. Tudo
fruto do que estamos tentando escapar a todo o momento. Tudo fruto de nós
mesmos, do que somos quando não sabemos quem somos.
Hoje acordei desanimada. Um dia ensolarado,
bonito até, cheio de coisas pra oferecer, porém como acordei permaneci...
estirada na cama, pensando que sentido faria levantar e enfrentar um cotidiano
que não me deixa espaço pra pensar. Deitada estava, deitada fiquei, deitada
estive até que ouvi tocar uma música que há tempos não ouvia... Aquilo foi como
se estivessem injetando sangue nas minhas veias e por um momento já não era mais
possível estar deitada. Precisava saber de onde vinha, quem ouvia, quem além de
mim gostaria de uma música dessas pela vizinhança.
Com meus pijamas percorri a
calçada até identificar um portão verde, o qual nunca havia reparado antes,
quatro casas após a minha... e inevitavelmente toquei a campainha. Enquanto
aguardava alguma resposta não pude deixar de ficar me perguntando como não
havia reparado neste portão antes... quantas coisas tão próximas a mim e que
não as vejo realmente... Porque será que eu não as vejo?
Eis que minha resposta chegou ao
meu encontro, e depois do barulho de ferrolho enferrujado a abertura do portão
verde me revelou os olhos grandes de uma outra pessoa que me fitou tão surpresa
que não podia esconder sua expressão. Ela que tinha os olhos castanhos mais
bonitos e brilhantes que eu já havia visto, vestia pijamas de calça comprida
como eu, talvez também pensando que não valeria muito a pena trocá-los no dia
de hoje.
De um jeito meio desajeitado,
cocei a cabeça e perguntei se estava incomodando... mas que de toda forma e por
algum motivo que não sei explicar essa música me fazia sentir uma mistura de
sentimentos tão grande e que como não era muito conhecida, eu não me contive em
procurar saber quem a ouvia... Quem além de mim a ouviria tão alto, tamanho dia
útil, logo no dia em que me senti tão desanimado, pequeno e insignificante?
Ela sorriu e seu sorriso
misteriosamente pareceu fazer parte da melodia da musica que me atraía. Seu
sorriso imperfeito e que por sua imperfeição parecia o mais perfeito pra mim,
acompanhou um convite para entrar, um convite para um café na varanda. E assim
ficamos sentadas, café em mãos, escutando a música terminar e tendo expressões
parecidas a cada parte... Terminada a canção ela tirou o cd, que na verdade era
uma cópia, e me deu de presente dizendo que poderíamos ouvi-lo qualquer dia
desses... que afinal não conhecia muita gente que gostava da música e inclusive
não entendia como podiam não se deliciar com ela. Naquele momento senti nascer
uma conexão que não sei explicar. Me despedi, pedi desculpas pelo incomodo e
disse que devolveria o cd assim que possível.
Chegando em casa, passei o dia
inteiro ouvindo as musicas gravadas e cada uma delas pareceu diferente para
mim... diferentes de todas as vezes que já havia ouvido. E ao anoitecer, deitei
e de fones de ouvido sem conseguir tirar a lembranças dos grandes, expressivos
e castanhos olhos atrás da porta verde. Pensei... o quão incríveis e
inesperadas podem ser as conexões que fazemos com as outras pessoas. Naquele
momento eu já não era mais a mesma, algo tinha mudado, mesmo eu não sabendo o
que era...
Adormeci pensando no que diria
amanhã quando fosse devolver o presente, pensando no quanto gostaria de
conhecer a alma daquela que me ajudou a ter um dia diferente do que eu
esperava... e ajudou sem esforço nenhum... que me ajudou apenas por me
encontrar... por sua alma se encontrar com a minha.
Adormeci querendo que amanhecesse
e que fosse um dia ensolarado para se cantarolar enquanto se passa um café... De
repente acreditei que poderia ser um bom dia para conhecer coisas novas. Um bom
dia para cafés, conversas, musicas e silêncios. E que talvez existir fazia
muito sentido. Adormeci sorrindo.